Desespero

Ora, quando a discordância, o desespero, apareceu, seguir-se-á que só por isso persista? De modo algum; a duração da discordância não depende desta, mas da relação que se relaciona consigo própria. Por outras palavras: cada vez que se manifesta uma discordância, e enquanto ela permanece, é necessário remontar à relação. Diz-se, por exemplo, que alguém apanha uma doença, digamos por imprudência. Em seguida declara-se o mal, e, a partir desse momento, é uma realidade, cuja origem está cada vez mais no passado. Seria cruel e um monstro quem continuamente censurasse o doente por estar a apanhar a doença, como a fim de dissolver a cada momento a realidade do mal na sua possibilidade. Bom! apanhou-a por sua culpa. A persistência do mal não é mais do que a simples consequência do único momento em que a apanhou, ao qual não se pode a cada passo reduzir o progresso da doença; ele apanhou-a, mas não se pode dizer que ainda a apanha. De outro modo se passam as coisas no desespero. Cada um dos seus instantes reais é redutível a sua possibilidade; a cada momento de desespero, se apanha o desespero; o presente constantemente se desvanece em passado real, a cada instante real do desespero o desesperado contém todo o passado possível como se fosse presente. Deriva isto de ser o desespero uma categoria do espírito, que no homem diz respeito à sua eternidade. Mas não podemos ficar quites com esta eternidade para toda eternidade; nem sobretudo rejeitá-la por uma vez; a cada instante em que estamos sem ela é porque já a rejeitamos ou estamos a rejeitá-la- mas ela volta, quer dizer, em cada instante que desesperamos apanhamos o desespero. Porque o desespero não é uma consequência da discordância, mas da relação orientada sobre si própria. E desta relação consigo própria, tampouco como do seu eu o homem pode estar quite, o que não é, afinal, senão o mesmo fato, pois que o eu é a relação voltada sobre si própria.

O desespero humano de Kierkegaard (1849)

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